#35 Ser professor, ser comunista

A extrema direita e, em especial, esses fascistoides da chamada Escola sem Partido costumam reclamar, estranhamente, da presença de dois elementos que seriam terríveis para eles, na nossa escola pública. Seriam: a presença de Paulo Freire e a presença de Karl Marx ou do comunismo.

Quem dera eles tivessem razão e isso fosse verdade. Infelizmente não é. Paulo Freire, por exemplo, que é tão citado, tão falado por muitos professores que se acham de esquerda, é praticamente ignorado, tanto na teoria quanto na prática. A prova disso é que a nossa escola pública, em essência, continua utilizando a velha pedagogia tradicional, a pedagogia bancária, tão criticada pelo grande educador. Claro que isso não é por culpa ou responsabilidade de nossos professores e professoras, mas dos poderes estatais e mercantis que querem que nossa escola continue assim, utilizando métodos atrasados e ineficientes.

Mas eu quero tratar aqui especialmente da segunda grande mentira, aquela que diz que nossa escola pública está impregnada das ideias de Karl Marx ou do comunismo. Infelizmente não é verdadeira. Vamos, então, tentar fazer com que ela se realize, fazer com que os nossos professores, as nossas professoras reflitam a respeito das ideias marxistas e, quem sabe, até se digam orgulhosos de serem comunistas.

Para tratar desse assunto, vamos destacar dois aspectos. Primeiro, falar sobre as mitologias e as bobagens que são tão propagadas e difundidas pela ideologia capitalista e pela direita de um modo geral, que acabam parecendo verdadeiras, e se impregnando no senso comum. Em seguida, mencionar a nova ética que é inaugurada com o materialismo histórico e que é imprescindível para qualquer educação verdadeiramente progressista.

O primeiro dos absurdos é tentar invalidar as ideias de Karl Marx, ou o ideal comunista, com base em experiências como a da União Soviética, no período stalinista. A União Soviética teve realmente inspiração marxista e nos primeiros anos procurou segui-la. Mas com a assunção do Estado por Stalin, nada disso mais acontece. A mesma coisa nós podemos falar de outras experiências, que são verdadeiros totalitarismos, como a Coreia do Norte, por exemplo, que não têm nada a ver com Karl Marx. Utilizam o nome do marxismo, ou do comunismo, simplesmente para implantar aquilo que, na verdade, é inspirado na ideologia liberal capitalista.

As atrocidades cometidas por Stalin ou a instituição de Estados totalitários no Leste Europeu ou na Coreia do Norte não têm nada a ver com o ideais de liberdade e de emancipação das classes trabalhadoras de Karl Marx. Pelo contrário, essas atrocidades são muito semelhantes à forma de agir do capitalismo internacional hoje, que pouco se preocupa sequer com a sobrevivência da espécie, explorando as camadas trabalhadoras, fazendo com que o lucro domine tudo, e colocando em risco a própria vida no planeta.

Outra balela do pensamento de direita e do liberalismo capitalista é achar que toda a riqueza do pensamento comunista se reduza ao seu amor pelo Estado. Basta que alguém diga que é de esquerda ou de tendência socialista para que ele seja imediatamente acusado de defender o Estado forte, lento, corrupto, arrecadador de impostos, que é, na verdade, o horror do capital.

Essa crença não se sustente por vários motivos. Um deles é que o capital não vive sem o Estado. Não existe capitalismo sem Estado. Na verdade, esse horror ao Estado não é muito verdadeiro. Os liberais capitalistas têm horror, na verdade, é ao Estado sendo utilizado para proteger a população. Eles querem um Estado que garanta a existência do capitalismo, que dê condições inclusive para ele desenvolver a corrupção no seio do Estado. Dizer que o Estado é lento é simplesmente uma forma de pedir para que haja menos recursos para o Estado, e que se recolha menos impostos, que também é uma hipocrisia, porque eles reclamam tanto dos impostos, como se os impostos saíssem do seu suor. Não. O imposto é o valor a mais produzido pelo trabalhador, que, nas democracias, parte dele é endereçada ao Estado para que o Estado proteja a população, contra as ganâncias dos poderosos, especialmente do capital.

E aqui eu tomo a liberdade de recomendar a leitura do meu livro recente “O Capital para educadores: Aprender e ensinar com gosto a teoria científica do valor”, onde eu comento, a impostura dos impostômetros, organizados pela ociosa classe capitalista, querendo acusar o Estado de viver às custas do Capital, e dou condições de vocês se convencerem de que quem arca, na verdade, com toda riqueza arrecadada pelo Estado, com tudo aquilo que o Estado faz, é a classe trabalhadora. É do seu esforço que sai, não do esforço de qualquer classe ociosa.

Enfim, outro motivo pelo qual não se sustenta essa crença no fanatismo pelo Estado, ou na crença de que o pensamento comunista se sintetiza no amor ao Estado é o fato de que, historicamente, o comunismo sempre se bateu pela eliminação, a extirpação do Estado tal qual nós o conhecemos. O comunismo quer a organização da sociedade com a propriedade comum dos meios de vida. Daí seu nome “comunismo”, organizando a sociedade em favor do bem comum, sem um Estado poderoso que domine e que oprima as pessoas em nome de determinada classe.

A terceira tolice presente no senso comum anticomunista é aquela que diz que o comunismo é contra a propriedade privada. Na verdade, os capitalistas sabem que não é bem assim. Mas eles insistem nesse jargão para aliciar as pessoas, especialmente das camadas médias, com medo de que ao vir o comunismo eles perderão sua casa, perderão seu carro e assim por diante. Não é nada disso. Karl Marx, mesmo antes de escrever O Capital, dá deixava muito claro, explicitamente, que tipo de propriedade privada que o comunismo era contra. Não era certamente contra a propriedade privada da própria vida, a propriedade privada dos bens e serviços necessários para usufruir a vida, daquilo que consumimos para ser feliz e para viver em sociedade. Não. Esse tipo de propriedade privada é inalienável do ser humano sempre na história. A propriedade privada, contra a qual o comunismo é, é aquela propriedade privada que institui a injustiça social. A propriedade privada, quer dizer a propriedade de uns, ou de uma classe, dos meios de produção da própria vida, quer dizer, das condições objetivas de produzir a vida. Contra essa, o comunismo é, sim. Ele acha que os meios de produção da vida têm que ser propriedade comum, tem que ser instituída uma sociedade em que não exista uma classe ou alguém que utiliza do seu poder, porque tem monopolizado o poder da vida, porque tem em suas mãos a propriedade dos meios de produção, dos meios de produção da vida, e ele impõe ao restante da sociedade a forma que deve ser organizada e de que forma ele pode explorar esse restante da sociedade que não tem condições de produzir a vida. Então, o comunismo não é contra a propriedade privada, o comunismo é contra a propriedade privada das condições objetivas de vida que deve ser comum. Mais uma vez a palavra comunismo vem daí.

Bem, vamos agora, finalmente, falar sobre essa nova ética, que é possibilitada pelo pensamento comunista, em especial pelas contribuições teórico-científicas de Karl Marx, e que é um assunto, estranhamente, muito pouco difundido, muito pouco relevado, até mesmo pelos próprios marxistas. Vamos a ela, então.

Essa nova ética social contrapõe-se, certamente, à concepção judaico-cristã, elaborada na Idade do Ferro, que atravessou milênios mas que ainda se faz presente entre nós. E aqui é importante considerar os fatores que se fazem presentes na elaboração de uma ética social. Em primeiro lugar, o mais importante de todos é o fato de que o homem se manifesta diante do real, produzindo valores. Quer dizer, ele se diferencia da natureza, ele transcende a necessidade natural, à medida que produz valores. O segundo aspecto é que ele faz isso num contexto histórico, num determinado momento e a partir do conhecimento que ele tem da realidade.

Além disso, um terceiro fator muito importante é a forma como está organizada econômica e politicamente a sociedade, porque quem detém o poder tem condições de manter vigente determinado valor e determinada ética. Por isso, é bastante estranho pensar que uma ética forjada há muitos séculos antes, na Idade do Ferro, como a ética judaico-cristã, acabe servindo como uma luva para a ideologia capitalista presente.

Essa estranheza começa a desaparecer quando a gente atenta para o fato, por exemplo, de que não são todos os elementos da ética judaico-cristã que servem ao capitalismo. Alguns até contrariam. Por exemplo, essa de esperar a outra vida para viver, essa é contra o capitalismo. O capitalismo precisa do consumo, precisa que as pessoas consumam o máximo possível e queiram ser feliz nesta vida e não na outra. Então, isso contradiz, na verdade, o capitalismo.

Mas tem algumas coisas, especialmente relacionadas ao poder que existia tanto lá, quanto aqui. Por exemplo, o individualismo, a crença no destino, a subserviência a um deus ou aos poderosos, a necessidade da coesão social por meio de uma religião ou de uma ideologia, que mantenham todos obedientes aos donos do poder. E, principalmente, a manutenção dessa grande massa na ignorância a respeito da realidade, de modo a fazer com que eles continuem obedecendo e seguindo aqueles que detêm o poder.

Vejamos, então, mesmo brevemente, esses elementos teóricos que fundamentam a necessidade de uma nova ética social, baseada no materialismo histórico. Primeiramente temos que considerar que o homem se produz pelo trabalho. Ao pronunciar-se diante do real, ele cria valores; esses valores lhe possibilitam estabelecer objetivos, em seguida ele age para alcançar esses objetivos. Essa atividade adequada a um fim chama-se trabalho humano, trabalho humano em geral. Pois bem, o homem, então, é produto do trabalho humano.

Eu produzo a minha materialidade por meio do trabalho humano. Só que eu não faço toda ela diretamente, com o meu trabalho, eu dependo de uma infinidade de outros seres por conta da divisão social do trabalho. Desde as sociedade mais primitivas, um caça, outro pesca, outro cuida das crianças, outro faz vasos, e todos têm acesso ao trabalho de todos. Imagina, hoje, de quantos nós dependemos. O que nós fazemos diretamente da nossa vida? Como eu produzo diretamente a minha vida? Eu ainda coloco a comida na boa, pois bem. Mas, fora isso, quase todo o restante é feito por outras pessoas, por conta da divisão social do trabalho. A camisa que eu estou vestindo eu não dependo apenas de quem a confeccionou, ou de quem a vendeu no shopping, ou de quem a transportou até lá. Eu dependo de toda essa gente, eu dependo de quem trabalhou na fiação, na tecelagem, eu dependo desde o momento em que foi jogado o grão de algodão, a semente de algodão na terra, dependo mais do que isso, do trator que passou, de quem inventou o trator. E tenho que ter a consciência que o trator foi inventado na segunda metade do século XIX, mas dependeu de toda a civilização humana anterior, de todos os seres humanos que nasceram anteriormente. Uma simples peça que nós estamos utilizando hoje começou a ter a sua possibilidade de existência quando o primeiro ser ficou em pé na face da Terra. É essa a dimensão que nós temos que ter.

Assim, eu não dependo, para realizar a minha vida, para produzir a minha materialidade, apenas do meu próximo. Eu dependo radicalmente do meu distante, no tempo e no espaço. Isso é que é muito importante termos consciência. É com Karl Marx examinando as leis de produção da sociedade capitalista que nós vamos ter condições de ver como se produz a sociedade durante toda a história. E ela tem alguns elementos determinantes. Este: o homem não existe como singular, ele só existe no plural e cada ser depende, na verdade, de todos os seres humanos. Eu dependo, não de cem, de mil, de um milhão, eu dependo de bilhões de pessoas. Eu estou economicamente, materialmente, realmente – isso não é força de expressão – ligado ao mundo inteiro, de hoje e de ontem. Eu dependo da humanidade inteira. Eu sou síntese de toda essa humanidade. Qualquer coisa que eu faça, qualquer responsabilidade que eu tenha, tem que levar isso em conta.

Isso, às vezes, pode parecer um pouco decepcionante, um pouco frustrante, porque, afinal de contas, nós somos apenas uma gota no oceano, ou um grão de areia no deserto. Mas não significa que nós somos menos dignos por isso. Pelo contrário, significa que, primeiro, se não houver grãos de areia, não há deserto. Então, eu sou, sim, importante. Segundo, para que eu faça bem a minha parte diante dessa humanidade a quem eu devo tanto, eu não preciso ser nenhum grande herói, um César, um Mahatma Ghandi, um Einstein, ou quem quer que seja. Basta que eu faça bem a minha parte. O sentido ético é esse. Eu componho a humanidade inteira.

Por isso, quando alguém chega para mim e diz que é contra o negro, por exemplo, ele é contra mim, porque o negro é humanidade e eu sou humanidade. Por isso eu não posso tolerar. Veja a dimensão da universalidade. Essa ética tem que levar-nos a fazer o bem, não porque vamos ser premiados depois da morte, ou simplesmente ficar bajulando um deus que precisa de orações, e assim por diante. E nem também, simplesmente, o conceito de empatia: colocar-me no lugar do outro – que é até meio hipócrita, parece que só faço o bem se me coloco no lugar do outro, quer dizer, só se eu fizer o bem para mim mesmo. Claro, ninguém é contra a empatia, mas essa empatia não basta. Nós temos que pensar numa ética em que eu e o outro pensamos em favor da humanidade inteira. Essa é a riqueza de uma nova ética social. Veja o quanto isso é importante para os próprios movimentos de diversidade, de integrar as pessoas num pensamento comum, no bem comum. Esta é uma ética fundamentada no bem de todos, na responsabilidade que eu tenho de todos.

Podem dar o nome quiserem a essa concepção. Eu prefiro chamar de comunismo, porque eu estou pensando no bem comum. É isso. Parece que isso é muito importante para a educação, para o andamento da moral dentro da escola, para o andamento da escola de uma forma mais identificada com fins humanos, com fins humano-históricos. Para produzir um mundo melhor, e não produzir essas pessoas que acreditam em arma, que são homofóbicas, etc., que são racistas, que discriminam o outro, que querem simplesmente vencer o outro, e pensam simplesmente em competir e não fazer com o outro e estar como companheiro. Essa ética não era possível no tempo da Era do Ferro. Hoje é possível.

Essa é uma ética que nós precisamos para avançar e estarmos sempre mais interessados em difundi-la, e em difundir a ciência e o conhecimento como forma de atualizar seres humanos historicamente, como forma de educar de verdade.

Vitor Henrique Paro, 17 de novembro de 2023

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