#3 “A exploração do trabalho é resultado da maldade do capitalista”

Será que é isso mesmo? Infelizmente, é muito recorrente no senso comum (para não dizer em alguns círculos letrados também), a crença de que a exploração do trabalho só se dá como resultado de uma perversidade de quem explora. Para os economistas liberais, que não veem o capitalismo como um sistema intrinsecamente explorador, quem explora o trabalho nesse sistema explora por maldade, porque quer explorar, não por uma necessidade do capitalismo. A exploração é tomada como algo moral, como um valor negativo que já foi (ou está sendo) superado historicamente. Exploração é coisa do passado, existia generalizadamente na época da escravidão, por exemplo, mas hoje não tem mais cabimento.

Quer dizer, então, que se o capitalista for bonzinho não haverá exploração do trabalhador? Isso é o que a ideologia liberal pretende passar, mas não é bem assim [Neba]. Esse tipo de confusão se dá, em geral, por um entendimento impreciso do sentido econômico de exploração e pela omissão de algumas características importantes do capitalismo. Vamos, então, a esses temas.

Em termos científicos, quando se fala em exploração capitalista, não se pode restringir o termo a seu sentido ético, mas sim contemplar com rigor seu significado econômico. Em termos estritamente econômicos, a exploração se dá quando, no processo de produção, há a apropriação, pelo proprietário dos meios de produção, de algo que é produzido pelo trabalhador. Na produção escravista, por exemplo, a exploração se dava, economicamente, não porque o escravo era preso, açoitado e humilhado. Em termos morais, isso certamente deve ser levado em consideração, mas não diz nada do fato de haver ou não uma exploração em termos econômicos. A exploração se dava aí porque o escravo – que não tinha o direito, sequer hipotético, de ser proprietário dos meios de produção – produzia bens e serviços que eram apropriados por seu senhor. Ele tinha de produzir, portanto, não apenas sua vida (de penúria) mas a vida (farta) de quem o explorava. O mesmo se dava sob o feudalismo: os servos, que não possuíam nem a terra nem os demais meios de produção para produzirem sua vida material, tinham de se submeter às imposições dos proprietários, que lhes permitiam produzir seus meios de subsistência, desde que empregassem a maior parte do tempo trabalhando para produzir os bens e serviços para a reprodução também e principalmente da (boa) vida deles, proprietários dos feudos.

Acontece que, nesses modos de produção, o objetivo era produzir bens e serviços para consumo direto e imediato dos próprios proprietários dos meios de produção. Dessa forma, a exploração ficava mais explícita, porque os elementos produzidos eram apropriados e consumidos em sua forma concreta, como utilidades, para satisfazer as necessidades imediatas do explorador. Por exemplo: do trigo que o servo produzia, uma pequena parte ficava para seu consumo, e a parte maior, na forma concreta de trigo, era apropriada pelo senhor feudal. Dava para se verificar, de forma imediata e palpável, as dimensões do objeto expropriado. O trigo apropriado consubstanciava o trabalho do servo. Concluía-se o processo e patenteava-se o tamanho da expropriação.

No sistema capitalista, entretanto, o processo não termina aí. A produção (concreta) de valores de uso (objetos que atendem necessidades humanas) é apenas um meio para a produção de valores de troca (mercadorias, objetos passíveis de troca) que têm valor incorporado. O dono da fábrica de geladeiras, por exemplo, não se apropria das geladeiras produzidas para seu consumo próprio. Ele precisa vendê-las para ter acesso ao valor nela contido. O objetivo último do capitalismo é a produção de valores, e numa quantidade maior do que o valor despendido na compra dos elementos necessários à produção. Como só o trabalho produz valor, a exploração se dá pela apropriação do valor produzido pelo trabalhador. É o caráter abstrato desse objeto expropriado na exploração capitalista que a torna muito mais difícil de ser percebida do que quando era o próprio valor de uso, em toda sua concretude, o objeto da apropriação.

Perceba que não precisa haver maldade do capitalista para que a exploração se dê. Ela faz parte do próprio funcionamento do capitalismo. Não vale, portanto, a alegação de que a exploração é resultado da má intenção ou da crueldade do patrão. Ela é intrínseca ao capitalismo. Sem ela, não há reprodução ampliada do capital. O dinheiro oferecido na forma de salário, que se diz que paga o trabalho, remunera apenas a força de trabalho: aquele valor necessário para repor a energia despendida pelo trabalhador, ou seja, para reproduzir sua vida de trabalhador. Porém, durante sua jornada de trabalho, ele produz um valor incomparavelmente maior. O valor excedente é apropriado pelo capitalista. Essa é a razão de ser de todo o processo. O capital não oferece nada ao trabalhador que não lhe seja retribuído em escala enormemente ampliada. E assim tem de ser. Se o capitalista não explorasse, passando ao trabalhador, em vez disso, todo o valor que este produz, e que lhe seria de direito, não haveria capitalismo, porque o dinheiro aplicado não “renderia” absolutamente nada.

Perde totalmente o sentido, portanto, falar em capitalismo selvagem, como fazem seus aduladores, para diferenciar as sociedades em que há uma penúria mais insuportável dos trabalhadores e das classes despossuídas, querendo significar que a coisa é assim porque não se segue à risca o figurino liberal. Na verdade, porém, todo capitalismo é, em certo sentido, intrinsecamente selvagem. Ele o é no exato sentido de que, em vez de pautar-se por leis e valores éticos de justiça e solidariedade, criados historicamente pelos homens, o que ele segue é a lei da necessidade natural, a lei da selva, ou seja, a lei do domínio do mais forte (o capitalista, que detém as condições objetivas de vida) sobre o mais fraco (o trabalhador, que não tem alternativa senão submeter-se à exploração do capitalista).

Certamente há países em que os trabalhadores têm condições de menor exploração, por conta de leis e instituições (resultantes de lutas históricas contra a opressão) que coíbem, até certo ponto, a ação predatória do capital. Temos então um capitalismo com a característica selvagem mitigada. Mas ele continua sendo selvagem, pois se pauta em leis naturais (de necessidade, não de liberdade). Não é do interesse comum – ou seja, de todos, como advoga uma concepção socialista de sociedade –, mas apenas de alguns que, pela força, pela violência, pela esperteza, pela grilagem de terras, pela pirataria (ou pela herança, que é tributária de tudo isso), no decorrer da história, tiveram acesso privado aos meios de produção, que lhes dão o poder de impor sua vontade aos demais.

Vitor Henrique Paro, 06/01/2020

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COMENTÁRIOS

3 Comentários

  1. Djalma Bom

    Prof. Vitor Paro, este interesse comum de uma concepção socialista de sociedade, seria o que se advoga, como disse Karl Marx, de cada segundo sua capacidade a cada um sua necessidade? Quer dizer, estou pensando em uma sociedade onde todos são donos de tudo e tudo que se produz é e deveria ser compartilhado por todos. Djalma Bom, em 14 jun 2021.

    1. Djalma Bom

      quis dizer: *de cada um sua capacidade a cada um sua necessidade (lembrando do que disse Karl Marx)

  2. Marcia Saraiva

    A exploração do trabalho é sim, resultado da maldade do capitalista. Ela é tão malvada que o trabalhador, por muitas vezes, não percebe essa exploração, e de forma cega, contribui para exploração dos seus pares.

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