#7 “Na teoria do valor-trabalho, é o tempo cronológico que mede a magnitude do valor”

Esse equívoco, nem sempre explícito, costuma ocorrer quase sempre que se começa a estudar a teoria do valor em Marx. Após compreender que o que produz o valor é o trabalho abstrato, ou seja, o trabalho enquanto dispêndio de força de trabalho, e que a magnitude desse valor é medida pelo tempo de trabalho, parece natural que, quanto mais tempo uma pessoa aplicar-se em produzir determinada mercadoria, mais valor ela lhe acrescenta. Todavia, não é bem assim [Neba].

Se fosse o tempo cronológico medido em horas o parâmetro para aferir a magnitude do valor de uma mercadoria, então, um trabalhador inapto, por exemplo, que produzisse uma peça em uma hora, acrescentaria a essa peça o dobro do valor que acrescentaria um trabalhador especializado que a produzisse em meia hora apenas. Da mesma forma, uma unidade produtiva qualquer, que utilizasse instrumentos de produção adequados e tecnologia avançada, de tal forma que conseguisse produzir 100 peças de determinado valor de uso em uma jornada de trabalho, teria de vender cada uma dessas unidades pela metade do preço que conseguiria uma outra unidade produtiva que operasse com instrumentos de produção precários e tecnologia rudimentar, e assim conseguisse produzir apenas 50 unidades por dia da mesma mercadoria.

Sabemos que não é assim que as coisas acontecem. O erro básico desse raciocínio é supor que é o trabalho concreto que cria valor, não o trabalho abstrato, como verificamos em outros pitacos. Ora, se é o trabalho abstrato que cria valor, sua medida só pode ser o tempo de trabalho abstrato. Se trabalho abstrato é uma categoria social, obviamente o tempo de trabalho abstrato terá de ser algo determinado socialmente. Por isso, a medida do valor não leva em conta a hora relógio do trabalho concreto, mas aquilo que Marx chama de “tempo de trabalho médio socialmente necessário”. “Socialmente necessário” tem a ver com o estágio de desenvolvimento das forças produtivas – ou seja, dos conhecimentos, técnicas e instrumentos utilizados no processo de produção na sociedade. Se, por exemplo, as forças produtivas disponíveis na sociedade permitem produzir determinado bem ou serviço em uma hora, com o emprego de determinada força de trabalho, qualquer produtor que, utilizando a mesma força de trabalho, gastar um tempo maior que uma hora, estará empregando tempo desnecessário. Portanto, esse tempo adicional não acrescentará nenhum valor novo à mercadoria resultante.

Com relação ao “tempo de trabalho médio”, não se trata de maneira nenhuma de uma média aritmética dos múltiplos tempos de trabalho verificados na sociedade. Aqui entra um aspecto muito importante e que pode provocar sérios equívocos. Vimos que o produtor do valor não é a concorrência, mas o trabalho. Isso não significa que o valor não seja influenciado pelo mercado, pois cabe a este um papel determinante no estabelecimento do tempo médio socialmente necessário.

Numa sociedade mercantil, o trabalho de cada produtor privado tem, contraditoriamente, um duplo caráter social. Essa contradição se explica porque, em primeiro lugar, ao produzir algo para a troca, o produtor o faz de tal modo que esse algo tenha um valor de uso social, isto é, seja útil para outrem. Portanto, está suposta, já, no momento em que se produz, a relação com outro produtor que precisa ter interesse em sua mercadoria para decidir adquiri-la. Em segundo lugar, o produtor não produz algo para seu consumo final. O que ele deseja com a mercadoria que produz é ter acesso, pela troca, a outras mercadorias, produzidas por outrem. De novo está suposta, já na produção, a relação social com outros produtores.

Esse caráter social leva cada produtor – para vencer a concorrência na oferta de seus produtos – a buscar o máximo de produtividade, empregando as forças produtivas mais adequadas a seu alcance, de modo a produzir mais mercadorias por unidade de tempo, diminuindo assim o tempo de trabalho que é preciso para sua produção. Esse comportamento leva a que, inconsciente e involuntariamente, se consigne uma média que é dinâmica e com tendência declinante.

Aqui é muito importante observar que diminuir o tempo de trabalho requerido para a produção não significa apenas trabalhar mais rapidamente. O valor que comporá a mercadoria que está sendo produzida será a soma dos valores de seus componentes: meios de produção (objeto de trabalho mais instrumentos de produção) e força de trabalho. Cada um desses elementos já contém trabalho abstrato incorporado. Assim como o objeto de trabalho e os instrumentos de trabalho têm seus valores (trabalho pretérito) transferidos para o produto final, também a força de trabalho tem o seu.

Como toda mercadoria, o valor da força de trabalho é resultado da incorporação dos valores das mercadorias que a compõem: alimentação, vestuário, moradia, locomoção, lazer, educação, etc., ou seja, tudo o que o trabalhador consome para apresentar-se em condições de trabalhar. Como sabemos, esse valor é passado para as mercadorias numa primeira parte da jornada de trabalho (isso é pago pelo capital), mas o trabalhador continua acrescentando esses mesmos valores durante o restante da jornada, produzindo valor novo (que não é pago pelo capitalista, e constitui a mais-valia). De qualquer forma, a “substância” desse valor novo é a mesma do outro: trabalho abstrato contido na força de trabalho.

Outra dúvida que aparece frequentemente entre os que têm a felicidade de se iniciar no conhecimento da teoria do valor de Marx diz respeito à dificuldade de aceitar algo aparentemente bizarro como o fato de que o dinheiro que expressa o valor de uma mercadoria está, na verdade, representando horas de trabalho. Muitos perguntam: “Por que se diz que determinada mercadoria custa quarenta reais, ou dez dólares, e não tantas horas e tantos minutos?”

A razão é muito simples e está contida no fato de que o valor só se expressa por meio do valor de troca. Dinheiro (quarenta reais) é uma mercadoria que funciona como valor de troca expressando o valor.  Como vimos em outro pitaco, o valor não é diretamente visível. Desde os sistemas de troca mais simples, anteriores ao capitalismo, as trocas se davam entre valores de troca que expressavam valores. O agricultor que produzia sua vida indiretamente cultivando trigo, que ele trocava por outros bens necessários a sua manutenção e a de sua família, já permutava valores de uso que continham trabalho incorporado. Ao confrontar seu trigo com calçados, por exemplo, para saber quantos pares de sapatos corresponderia uma arroba de trigo, é como se ele se perguntasse: “Se, em vez de produzir trigo, eu estivesse produzindo sapatos com a mesma eficiência com que produzo trigo, quantos pares de calçados eu produziria no tempo em que despendi para produzir essa arroba de trigo?” Ele não tinha consciência disso, mas essa era a lógica que dirigia suas decisões. É a lógica de uma sociedade em que a divisão social do trabalho se dá por meio da troca de equivalentes.

Vitor Henrique Paro, 27/01/2020

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COMENTÁRIOS

Comentário

  1. FRANCISCO CEZAR DE LUCA PUCCI

    É difícil entender (e aceitar -muitos economistas não aceitam) essa teoria do valor abstrato. Veja a dificuldade do exemplo: “qualquer produtor que, utilizando a mesma força de trabalho, gastar um tempo maior que uma hora, estará empregando tempo desnecessário (…)”. O exemplo implica em uma visão competitiva entre produtores e não em tempo socialmente médio (outra abstração difícil). Em outro parágrafo, “Essa contradição se explica porque, em primeiro lugar, ao produzir algo para a troca, o produtor o faz de tal modo que esse algo tenha um valor de uso social, isto é, seja útil para outrem (…)”. Ora, o dinheiro, como mercadoria universal de troca, já exige outra teoria sobre “valor de uso”. Em síntese, e parabenizando-o pelos excelentes textos que, sem dúvida, são uma fonte de conhecimento valiosa, Marx está sempre presente, mas, como em toda ciência, sempre exigindo que sua Teoria se desenvolva, caso contrário vira dogma.

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