#21 Reprovação escolar? Não, obrigado.

Com este título, publiquei, no portal do Estadão, o texto que reproduzo a seguir. Já se passaram 18 anos. Que o leitor ou leitora julgue de sua atualidade e pertinência. Para maior fundamentação, consulte meu livro Reprovação escolar: renúncia à educação.

Pouca coisa é tão cercada por equívocos, em nossa escola básica, quanto a questão da reprovação escolar, que se perpetua como uma traço cultural autoritário e antieducativo. Começa pela abordagem errônea de avaliação na qual se sustenta. Em toda prática humana, individual ou coletiva, a avaliação é um processo que acompanha o desenrolar de uma atividade, corrigindo-lhe os rumos e adequando os meios aos fins. Na escola brasileira isso não é considerado. Espera-se um ano inteiro para se perceber que tudo estava errado. Qualquer empresário que assim procedesse estaria falido no primeiro ano de atividade. E mais: em lugar de corrigir os erros, repete-se tudo novamente: a mesma escola, o mesmo aluno, o mesmo professor, os mesmos métodos, o mesmo conteúdo… É por isso que a realidade de nossa escola não é de repetentes, mas de multirrepetentes.

Absurdo semelhante ocorre quando se trata de identificar a origem do fracasso. A atividade pedagógica que se dá na escola supõe um quase infindável conjunto de atividades, de recursos, de decisões, de pessoas, de grupos e de instituições, que vão desde as políticas públicas, as medidas ministeriais, passando pelas secretarias de educação e órgãos intermediários, chegando à própria unidade escolar em que se supõem envolvidos o diretor, seus auxiliares, a secretaria, os professores, seu salário, suas condições de trabalho, o aluno, sua família, os demais funcionários, os coordenadores pedagógicos, o material didático disponível etc. etc. Mas, no momento de identificar a razão do não aprendizado, apenas um elemento é destacado: o aluno. Só ele é considerado culpado, porque só ele é diretamente punido com a reprovação. Como se tudo, absolutamente tudo, dependesse apenas dele, de seu esforço, de sua inteligência, de sua vontade. Para que, então, serve a escola?

Essa pergunta, aliás, vem bem a propósito da forma equivocada e anticientífica como se concebe o ensino tradicional ainda dominante entre nós. Apesar de a Didática ter reiteradamente demonstrado a completa ineficiência do prêmio e do castigo como motivações para o aprendizado significativo, ainda se lança mão generalizadamente da ameaça da reprovação como recurso pedagógico. Segundo esse hábito, revelador, no mínimo, da total ignorância dos fundamentos da ação educativa, à escola compete apenas passar informações, ameaçando o aluno com a reprovação caso ele não estude. Daí a grita de professores, pais e imprensa de modo geral contra a retirada da reprovação na adoção dos ciclos, afirmando que, livre da ameaça da reprovação, o aluno não se motiva para o estudo. Ignoram que a verdadeira motivação deve estar no próprio estudo que precisa ser prazeroso e desejado pelo aluno. Nisso se resume o papel essencial da escola: levar o aluno a querer aprender. Este é um valor que não se adquire geneticamente; é preciso uma consistente relação pedagógica para apreendê-lo. Sem ele, o aluno só estuda para se ver livre do estudo, respondendo a testes e enganando a si, aos examinadores e à sociedade.

Mas defender a retirada da reprovação não significa apoiar “reformas” demagógicas de secretarias de educação com a finalidade de maquiar estatísticas. Essa prática, embora coíba o vício reprovador, nada mais acrescenta para a superação do mau ensino. Com isso, o aluno que, após reiteradas reprovações, abandonava a escola, logo nas primeiras séries, agora consegue chegar às séries finais do ensino, mas continua quase tão analfabeto quanto antes. A diferença é que agora ele passa a incomodar as pessoas, levando os mal informados a porem a culpa pelo mau ensino na progressão continuada. Mas o aluno deixa de aprender, não porque foi aprovado, mas porque o ensino é ruim, coisa que vem acontecendo desde muito antes de se adotar a progressão continuada. Apenas que, antes, esse mesmo aluno permanecia na primeira série, ou se evadia, tão ou mais analfabeto que agora. Mas aí era cômodo, porque ele deixava de constituir problema para o sistema de ensino. Agora, com a aprovação, percebe-se a reiterada incompetência da escola.

Só a consciência desse fato deveria bastar como motivo para se eliminar de vez a prática da reprovação no ensino básico: porque ela tem servido de álibi para a secular incompetência da escola que se exime da culpa que é dela e do sistema que a mantém. A reversão dessa situação exige que o elemento que estrutura a escola básica deixe de ser a reprovação para ser o aprendizado. É preciso reprovar, não os alunos, para encobrir o que há de errado no ensino e isentar o Estado de suas responsabilidades, mas as condições de trabalho, que provocam o mau ensino e impedem o alcance de um direito constitucional. São Paulo, dezembro de 2001.

Texto publicado,  em 15/2/2002, em http://www.estadao.com.br/artigodoleitor/htm/2002/fev/15/151.htm. Disponível em: http://www.vitorparo.com.br/wp-content/uploads/2014/06/reprovacaoescolarnaoobrigado.pdf

Vitor Henrique Paro, 27/02/2020

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COMENTÁRIOS

2 Comentários

  1. Sani Cruz

    De acordo com o texto a escola é sim culpada de suas ações quanto à reprovação, mas a o que contradizer uma vez que a escola segue os caminhos já trilhados por uma educação programática dos PCNS, PNL e agora pela BNCC, principalmente as escolas públicas, seria facilmente detectada nas escolas públicas de Ensino Fundamental e Médio a aprendizagem para satisfazer a classe social mais favorecida, onde se impõe aquilo que o futuro trabalhador deve saber para servir, sabe-se perfeitamente que o aluno quanto ser humano possui a mesma capacidade de aprender e que isso independe de cor raça ou situação financeira, mas a escola pública é limitada a ensinar aquilo que lhe é imposto pelas Diretrizes da Educação. A reprovação é justamente o mecanismo que lhe é imposto para afunilar quem chega e quem não deve chegar, não importa se o aluno é ou não capaz, a causa é quantos a elite quer que chegue ao seu patamar, e quantos a mesma quer para lhe servir. Essa questão é clara e notória tanto quanto a politica escravista que assola nosso país que não é governado por brasileiros e sim por nações exploradoras e que enquanto a massa não acordar será vera mente manobrada e explorada em nome de uma democracia que não existe, onde inventam direitos a uma sociedade alienada que acusa a escola de não ensinar o que deveria. A escola é a única instituição mundial que dá legitimidade ao conhecimento em qualquer instancia do ensino desde a mais tenra idade do individuo até sua formação profissional. O que falta para a escola é tomar propriedade desse conhecimento e dessa atuação legitimada socialmente, começar democraticamente mostrar a sociedade a sua importância e o seu lugar na sociedade. Lutar pelo status de seus educandos e educadores. A escola pública sabe fazer e entende que por ser escola não é apenas lugar de acertos é local também de erros, por isso se chama escola, se faz necessário que a mesma compreenda que alunos bem sucedidos é seu retrato no mundo, mas para tanto é preciso autonomia. Sem contar que a escola pública hoje recebe e acolhem todos os alunos de baixa renda, alunos portadores de necessidades especiais, com altas habilidades, múltiplas necessidades especiais, e tem que dar conta de conteúdos programáticos para todas as modalidades, muitas vezes sem estruturas físicas prediais para atender uma clientela tão diversificada, sem contar que as Leis estão presentes para amparar a todo esse alunado, daí dizer que a escola reprova ou aprova analfabetos torna a questão escolar vulnerável aos olhos de quem ler um texto que revela a imposição de reprovação apenas para a escola sem analisar o contexto em que ela está inserida ou a realidade de cada uma.

    1. Vitor Henrique Paro

      Olá, Sani. Muito obrigado por sua manifestação. Fico feliz que um texto tão pequeno tenha propiciado tantas reflexões. Em meus vídeos neste mesmo site, você pode encontrar um tratamento mais aprofundado da questão. Veja especialmente a série de cinco pequenos vídeos intitulada “Ciclos e Progressão Continuada“. Um forte abraço.

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